AS ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA AO INSTITUTO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
A atividade empresária no Brasil foi inicialmente regulada pelo Código Comercial, promulgado em 1850, que fez parte do arranjo jurídico-institucional ocorrido ao longo das primeiras décadas após a Independência, constituindo-se um dos aspectos do processo de consolidação do Estado brasileiro.
Somente em 2002, com a publicação do Código Civil Brasileiro, foi revogada expressamente a primeira parte do quase monárquico Código Comercial, que segue regulando as disposições referentes ao comércio marítimo.
Mais de uma década depois, sobreveio o Projeto de Lei nº 487 de 2013, objetivando nova reforma nas disposições do Código Civil relativas ao agora denominado “Direito de Empresa”, para instituir o novo Código Comercial, desta vez regulando não apenas as atividades comerciais e a profissão de comerciante previstas pelo Código de 1850, como também evoluindo para unificar e regulamentar todo o “Direito de Empresa”.
O novo Código Comercial pretende disciplinar a organização e a exploração da empresa, assim como suas matérias conexas, incluindo o direito societário, o direito contratual empresarial, o direito cambial, o agronegócio, o direito comercial marítimo e o direito processual empresarial
Enquanto o novo Código Comercial não entra em vigor, o “Direito de Empresa” segue disciplinado pelos artigos 966 a 1.195 do Código Civil e pelas leis especiais, à exemplo da “Lei das Sociedades Anônimas” (Lei nº 6.404/1976).
Em 2019, além dos avanços para a aprovação do novo Código Comercial, foi publicada a “Lei da Liberdade Econômica” (Lei nº 13.874/2019) que, dentre outras alterações, trouxe reflexos na seara civil, especialmente nos arts. 49 e 50 do Código Civil.
É importante lembrar que a “Lei da Liberdade Econômica” adveio da Medida Provisória nº 881/2019, tratando-se, portanto, de ato do Presidente da República, e reflete o pensamento liberal norteador do atual governo.
Os artigos 49 e 50 do Código Civil estão inseridos no Título “Das Pessoas Jurídicas” e, apesar de a “Lei da Liberdade Econômica” não ter trazido grande novidade substancial no ponto, cumpriu com seu papel de prestigiar a atividade empresária, ao salientar a distinção entre a pessoa jurídica e seus respectivos sócios, associados, instituidores ou administradores.
Ao incluir o art. 49-A e seu parágrafo único ao Código Civil, a “Lei da Liberdade Econômica”, objetivou afastar qualquer dúvida acerca da absoluta legalidade da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, sendo esta estabelecida com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributos, renda e inovação.
Lado outro, ao alterar a redação original do art. 50 do Código Civil, prestigiou-se o importantíssimo instituto da desconsideração da personalidade jurídica, instrumento necessário para atingir o patrimônio do sócio fraudulento, nos casos previstos em lei, e acrescentou uma modesta parte final, mas que, quando da utilização prática do instituto, obsta o ingresso indevido no patrimônio daquele sócio, ou daquele diretor honesto, que não se beneficiou do abuso econômico cometido pelo par.
Anteriormente, com o deferimento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, apenas o bom senso do magistrado limitava o ingresso ao patrimônio do sócio que cometeu o abuso da personalidade jurídica, e não ao de todos os sócios e administradores da sociedade.
Agora, o texto legal é claro e lúcido, ao trazer a limitação que deveria ser óbvia, além de definir os conceitos de desvio de finalidade e de confusão patrimonial, cuja análise ficava à critério do julgador.
O art. 7º da “Lei da Liberdade Econômica” alterou, portanto, os arts. 49 e 50 do Código Civil, que passaram a ter a seguinte redação:
“Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.
Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.”
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
- 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
- 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e
III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
- 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.
- 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
- 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.” (NR)
O dispositivo é autoexplicativo: o sócio ou o administrador que utilizar a pessoa jurídica intencionalmente para lesar seus credores, ou para praticar ato ilícito, deverá responder diretamente pelo ato, não sendo possível atingir o sócio inocente.
Já a confusão patrimonial ficou definida como a ausência de separação entre o patrimônio dos sócios ou administradores com a pessoa jurídica, mas esta deve se dar de forma recorrente e relevante para o patrimônio da sociedade.
Outra alteração pertinente e necessária, foi o impedimento de gravame sobre o patrimônio de outras pessoas jurídicas integrantes de um mesmo grupo econômico sem o preenchimento dos requisitos previstos pela nova redação do art. 50.
É desleal a postura do sócio que utiliza a pessoa jurídica com propósito de lesar credores e para praticar atos ilícitos, contudo, é igualmente desonesta a postura daquele credor que, por via transversa, utilizava o incidente de desconsideração da personalidade jurídica para atingir o patrimônio de outro sócio, ou administrador, ou de outra empresa do grupo econômico, que não participou do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial.
As alterações tornaram-se importantes para esclarecerem conceitos que deveriam ser óbvios, mas que por vezes não eram corretamente interpretados e aplicados, pondo o empresário em constante situação de risco de ter seu patrimônio indevidamente onerado em diversas situações.
A escolha do nome da Lei também foi cabível, pois, de fato, sinaliza a intenção de estimulo à atividade empresarial e ao empreendedorismo, para os quais a segurança jurídica é essencial.
A definição e a clareza da norma deverão limitar o arbítrio dos magistrados no ponto, para que observem fidedignamente a lei, respeitando a autonomia patrimonial da empresa, assim como a distinção do patrimônio do empresário, e para que defiram os pedidos de desconsideração da personalidade jurídica somente naqueles casos em que todos os requisitos estejam evidentes nos autos.
Maria Cristina Fernandes Rosado
OAB/CE nº 19.664