A nova legislação, em vigor desde o dia 28/12/2018 (data da sua publicação), alterou a Lei nº 4.591/1964, que há muito dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias, para fins de – finalmente – regulamentar o chamado “distrato imobiliário”, versando sobre os direitos e deveres de incorporadoras, loteadoras e adquirentes de imóveis nas hipóteses de resolução contratual.
Como primeiro destaque, as inovações trazidas tutelam o direito do adquirente à informação sobre aspectos essenciais da contratação imobiliária, estabelecendo que tais ajustes sejam iniciados por uma espécie de quadro-resumo que contemple os dados basilares atinentes à conotação econômica do negócio entabulado, à qualificação do imóvel, aos marcos temporais, à extinção do vínculo etc., a teor do rol previsto no concebido art. 35-A pela referida norma.
No que mais importa, adiante a lei passou a prescrever o percentual dos valores que serão restituídos na hipótese de desfazimento do contrato celebrado, mediante distrato ou resolução contratual decorrente de inadimplência do comprador, o que antes vinha sendo definido com uso da jurisprudência (na verdade, que essa legislação em grande parte reflete). De acordo com a nova regra, caso a desistência se dê em um empreendimento no qual não existe patrimônio de afetação (restrito a um empreendimento específico), a restituição será de 75% dos valores adimplidos. Já naqueles em que há patrimônio submisso ao regime de afetação, a devolução será de 50% dos valores pagos.
Em síntese, no novo cenário o comprador que der causa ao desfazimento do negócio terá direito a restituição do valor pago, acrescido de correção monetária (na forma do índice estipulado em contrato), todavia deduzindo-se de tal quantia a monta desembolsada a título de comissão de corretagem e a penalidade, que, como visto, pode ser de até 50%.
Diante disso, surgem apontamentos no sentido de que o percentual da retenção estipulado pela nova lei possa ser desproporcional, notadamente porque os Tribunais de Justiça e o Superior Tribunal de Justiça vinham muitas vezes fixando esse percentual de retenção no patamar entre 10% e 25%.
É de se ressaltar que tal abordagem ainda pode ser alvo de novos debates na ambiência do próprio Poder Judiciário, visto que o artigo 51, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor é expresso ao dispor que são nulas cláusulas que subtraiam do consumidor o direito ao reembolso das quantias por si já pagas. No mesmo enfoque, os incisos IV e XV do mesmo artigo resguardam os consumidores contra obrigações que lhes coloquem em desvantagem exagerada.
Não obstante isso, desta vez não se está diante de simples cláusulas contratuais nulificáveis ao abrigo da proteção do CDC; ao revés, cuida-se de lei nova e especial respeitante ao assunto.
Na verdade, são muitas as nuances que circunscrevem a discussão e esse pequeno artigo não é espaço próprio para exauri-la. De qualquer forma, não há dúvidas de que a mens legis (finalidade da lei) examinada claramente busca trazer segurança jurídica a essas relações imobiliárias. Com efeito, era necessário ser estabelecido um padrão para que o jurisdicionado (aqui em sentido amplo, seja consumidor, investidor ou fornecedor) possa se pautar. E não é para menos. A adoção de entendimentos divergentes sobre uma mesma matéria é substancialmente lesiva à coletividade de envolvidos nos negócios jurídicos e ao sistema econômico como um todo.
Para o avanço do ramo da construção civil – um dos pilares da nossa economia, dado o lastro intrínseco que carrega consigo – é indispensável que o investidor possa previamente precificar suas operações de acordo com os riscos positivados no ordenamento jurídico, mormente quando se refere a um mercado que depende de tão intensiva aplicação de capital. O consumidor, idem, ao optar pela aquisição de um imóvel também deve conhecer “as regras do jogo” antes da escolha definitiva.
Para concluir, no tocante ao direito intertemporal vê-se espaço para questionar a possibilidade, ou não, de aplicação da Lei nº 13.786/2018 aos contratos celebrados antes de sua entrada em vigor (repita-se, em 28/12/2018).
A lei posta é de índole material, relacionada ao modus faciendi da resolução do contrato imobiliário. Daí, não se tratando de lei processual de eficácia imediata, não poder-se-ia aplicar, ao menos a princípio, às contratações que lhe sejam anteriores.
O art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, endossa direito individual aos titulares de determinadas circunstâncias jurídicas — a saber: ato jurídico perfeito, coisa julgada e direito adquirido — de não sofrerem os efeitos de novas leis, ao passo que o art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, em harmonia com o comando constitucional referido, prevê a aplicação imediata da nova lei, mas desde que observadas aquelas três situações mencionadas acima.
A questão, pois, consiste em verificar, no caso concreto, se tal aplicação irá, direta ou indiretamente, desrespeitar o ato jurídico perfeito (tal como eventual cláusula contratual anterior, e não um suposto direito ao menor percentual de retenção que antes vinha sendo aplicado inter partes por meio de precedentes judiciais).
Noutras palavras, salvo melhor juízo, se não houver previsão negocial pregressa estipulando o percentual, a título de cláusula penal, será possível sim aplicar imediatamente a nova lei, dado que não haverá ato jurídico perfeito violado, mas mera valia da lei nova (e se não de forma expressa, de modo reflexo ao abrigo do livre convencimento motivado).
Lado outro, se o contrato de promessa de compra e venda ou cessão previa um percentual a título de cláusula penal, seja ele inferior ou superior ao desta feita fixado, tal estipulação estará constitucionalmente “imune” à aplicação da nova lei, sob pena de afronta ao artigo 5º, XXXVI, da Carta da República (jamais sendo possível, contudo, obstar vestígios novo regramento quando houver brecha para deliberação discricionária pelo juízo).
André Passos
Advogado